Morre o dramaturgo, escritor e professor Antônio Edson Cadengue


O dramaturgo, escritor e professor pernambucano Antônio Edson Cadengue,  faleceu na madrugada desta quarta-feira (1º), aos 64 anos. Ele deu entrada no Hospital Hapvida após uma queda, mas a causa oficial da morte ainda não foi divulgada. 

A nota de falecimento foi publicada pelo ex-aluno e amigo do artista, o professor universitário Igor de Almeida Silva: "Meu coração está partido. A dor que sinto não cabe em palavras". O velório do encenador ocorrerá nesta quinta-feira (2), a partir das 8h, no Teatro Valdemar de Oliveira, localizado no bairro da Boa Vista.

Carreira
Antonio Edson Cadengue (Lajedo, Pernambuco, 1954 - Recife, Pernambuco, 2018). Diretor e teórico. Desde a segunda metade dos anos 1970, destaca-se por se opor, criativamente, à expectativa de um teatro nordestino ligado ao mundo rural e às tradições da cultura popular. A partir de 1990, à frente da Companhia Teatro de Seraphim (CTS), outra marca de seu trabalho ganha relevo: a atenção a grupos minoritários sobretudo os discriminados por questão de raça, religião, doença mental e orientação sexual.


Ainda estudante de psicologia na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho), em 1975, inicia-se como encenador, e em troca de uma bolsa de estudo, dirige montagens para um grupo vinculado à faculdade. Até então, sua única referência teatral são os espetáculos de Vital Santos, assistidos entre 1969 e 1971, período em que reside em Caruaru, Pernambuco. Logo, porém, passa a ver tudo que é produzido na cena recifense e busca informações, por meio de leitura, sobre teoria teatral e literatura dramática.

Em 1976, conhece o cenógrafo Beto Diniz (1953-1989), carioca radicado no Recife, de quem se torna companheiro, dentro e fora do teatro. E o primeiro resultado dessa parceria é a montagem de A Lição, de Eugène Ionesco (1912-1994), levada ao palco nesse ano. O sucesso dessa produção suscita a criação da Companhia Praxis Dramática, dos atores Paulo Fernando de Góes e José Mário Austregésilo, uma das mais atuantes companhias teatrais pernambucanas na década seguinte. Para a estreia da Praxis, em 1977, Antonio Cadengue assina a direção de Esta Noite Se Improvisa, de Luigi Pirandello (1867-1936), e trabalha também como ator, desempenhando o papel do diretor do espetáculo. De passagem pelo Recife, o crítico Yan Michalski (1932-1990) tem a oportunidade de assistir a um ensaio para a reestreia da peça, e escreve ao encenador: "Deu para sentir a fantasia da sua concepção bem pessoal, a vitalidade e o bom humor das suas ideias, o seu domínio da escrita cênica, e a inteligência com que, mesmo tratando Pirandello com irreverente sem-cerimônia, você o reencontra em última análise - mais, sem dúvida, do que se o tivesse abordado com o formal 'respeito ao texto' ".

Também em 1977, com Beto Diniz, Cadengue se aproxima do Grupo de Teatro Vivencial, liderado por Guilherme Coelho, experiência de teatro de contracultura, desafiando a noção vigente de engajamento político e de cultura popular. Para esse grupo, dirige Viúva, porém Honesta, de Nelson Rodrigues (1912-1980).

Nos primeiros meses de 1978, faz especialização em direção teatral, em João Pessoa, por meio de convênio da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) com a Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro (Fefierj), depois denominada Unirio, e tem como professores, entre outros, Yan Michalski e Antônio Mercado. Termina esse curso, e segue, no mesmo ano, para o Rio de Janeiro, com o objetivo de ampliar seus conhecimentos teatrais. Estuda novamente com Yan Michalski as disciplinas de crítica teatral, oferecidas pela Fefierj. Nessa instituição, com outros alunos do curso, e com a coordenação do próprio Michalski, funda a revista Ensaio/Teatro. Além de colaborar como crítico, ensaísta e entrevistador, integra o conselho editorial da publicação, com Carmem Gadelha e Fátima Saadi (1955).

Do Rio de Janeiro, muda-se para João Pessoa, em 1979, para lecionar no curso de licenciatura em educação artística, na UFPB. Durante sua permanência na capital paraibana, encena dois espetáculos didáticos: Cartaz de Cinema: The Clown Is Dead (?), de Paulo Vieira (no qual assina a coautoria), e Soy Loco por Ti Latrina, uma colagem de textos de autores como Glauco Mattoso (1951), Affonso Romano de Sant'Anna (1937), Jomard Muniz de Britto e Manuel Puig, entre outros. Reverberando a estética do Grupo de Teatro Vivencial, os quadros da peça são interligados por escritos recolhidos nas portas e paredes dos banheiros da universidade, ditos das coxias, enquanto a cena é preenchida por pantomimas e pequenas performances silenciosas. As poucas apresentações, realizadas no próprio campus, provocam veementes reações tanto de aprovação quanto de repúdio. O espetáculo é suspenso e acusado de "imoral" e "inconsequente", por navegar entre o erótico e o político.

Embora radicado em João Pessoa, Cadengue continua a dirigir peças no Recife. Em 1980, encena Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues, tendo o dramaturgo João Falcão (1958), como ator, no papel de Serginho, e volta a colaborar com o Grupo de Teatro Vivencial, dirigindo, com Carlos Bartolomeu (1953) e Guilherme Coelho (1950), All Star Tapuias, colagem de textos dos próprios encenadores, com a colaboração de Sérgio Sardou.

Cadengue muda-se para o Recife em 1981. Aprovado no concurso para professor de direção teatral do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nela trabalha até 1998, quando se aposenta. Dirige o Curso de Formação do Ator - CFA/UFPE, de 1986 a 1988, e realiza montagens que transformam a condução pedagógica da formação de intérpretes no Recife.

Ingressa, em 1983, na pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e faz mestrado e doutorado em teatro, com orientação do professor Sábato Magaldi (1927-2016). Em ambos os cursos, concluídos respectivamente em 1989 e 1991, estuda a longa trajetória do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP).

Fora do âmbito da universidade, em 1984, realiza um espetáculo de grande significação em sua carreira como encenador: Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare (1564-1616), produção da Fundação de Cultura Cidade do Recife. A montagem conta com doze atores e nove atrizes, sete músicos, cenografia distribuída em vários planos, figurino concebido e realizado em torno do onírico, do oriental e do elisabetano, e maquiagem e interpretação carregadas de teatralismo. Sobre essa encenação, a crítica Mariangela Alves de Lima (1947) comenta: "Este Sonho de uma Noite de Verão pernambucano combina exatamente o conhecimento e a liberdade para transformar a escrita em imagens contemporâneas, legíveis e tão sedutoras quanto foram sonhadas no momento da sua invenção. É um Sonho feito no Recife com a devida vênia a uma herança universal da humanidade que sobrenada os séculos e as geografias. [...]. É uma encenação que cortesmente presta um tributo ao autor e às teorias mais modernas de encenação antes de lançar-se num voo livre e inevitavelmente tropical. Há um esquema rigoroso de composição, mas a impressão que predomina depois do espetáculo é a de uma fantasia cálida e solta".

Em 1985, dirige para o Quinteto Violado uma adaptação da ópera O Guarani, de Carlos Gomes (1836-1896), que estreia no Teatro de Santa Isabel e excursiona por várias capitais do Brasil, e pela Alemanha e Áustria. Ainda nesse ano, dirige para a Aquarius Produções Artísticas, de Bóris Trindade, Tango, de Slawomir Mrozek (1930-2013), e em 1988, O Burguês Fidalgo, de Molière (1622-1673), com codireção de Beto Diniz. São espetáculos de grande apuro técnico, e significam uma nova tentativa de profissionalização do teatro local.

De sua vivência em São Paulo, enquanto cursa o mestrado e o doutorado, surge a necessidade de formar no Recife uma companhia estável que dê espaço às suas inquietações e às novas informações processadas. Em 1990, Cadengue funda, com outros componentes, a Companhia Teatro de Seraphim, que somente em 1992 ganha figura jurídica, e tem como sócios Marcus Vinicius de Pinho e Souza, Aníbal Santiago, Lúcia Machado, Manuel Carlos e Augusto Tiburtius.

A peça de estreia da CTS é Heliogábalo & Eu, de João Silvério Trevisan (1944), direção de George Moura. Nessa montagem, Cadengue atua como dramaturgista. A partir de então, dirige quase todos os trabalhos da companhia. Nos anos 1990, a CTS produz intensamente, tornando-se um dos grupos mais premiados na cena teatral nordestina. Entre os espetáculos do repertório são marcantes, do ponto de vista da qualidade estética e de recepção da crítica (e, por vezes, do público), Em Nome do Desejo, de João Silvério Trevisan, em 1990 e 1992; A Lira dos Vinte Anos, de Paulo César Coutinho; Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues, em 1993; Os Biombos, de Jean Genet (1910-1989) (estreia nacional, com tradução de Fátima Saadi, especialmente realizada para a montagem), em 1995; Autos Cabralinos (Auto do Frade e Morte e Vida Severina), de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), em 1996; Lima Barreto, ao Terceiro Dia, de Luís Alberto de Abreu (1952), em 1998 e A Filha do Teatro, de Luís Augusto Reis, em 2007.

Com Senhora dos Afogados, a CTS se apresenta em Portugal, dentro do Projeto CumpliCidades, em 1994. Em Lisboa, o crítico Manuel João Gomes, do diário português Público, assim se refere ao espetáculo: "O encenador apagou da representação quase toda a cor local nordestina. Vestiu os actores à moda do 'siglo d'oro' espanhol (a família Drummond de preto, branco e ouro e o coro das prostitutas de vermelho). Esse anacronismo é talvez o elemento mais polêmico de um espetáculo belíssimo, que não perde nada da poesia frenética e cruel, do erotismo despudorado, do imoralismo, do crime feito obra de arte que atravessa o texto de Nelson Rodrigues. Antonio Cadengue (que tem dirigido peças de Genet, Shakespeare, Pirandello, etc.) criou neste espetáculo não só a melhor montagem teatral trazida pelas CumpliCidades como um dos melhores momentos de teatro brasileiro a que nestes últimos anos Portugal assistiu. Perdê-lo seria falhar um encontro com uma arte tão visceral quanto elaborada: a autenticidade e a naturalidade dos coros, a boa integração das coreografias, o surpreendente epílogo em moldes japoneses (um fragmento de Nô, com mortos de regresso à vida) são alguns exemplos do bom domínio do encenador sobre a matéria que manipula"

Do DP

Postar um comentário

0 Comentários