Ao mestre, com carinho


Tive muita sorte no meu começo de vida profissional. Uma delas – e a que deixou marcas mais profundas pois mudou meu jeito de ser – foi ter convivido com Jairo Lima. Meu primeiro patrão em publicidade.

Jairo era um dramaturgo, intelectual, crítico literário, apaixonado por ópera e, também, grande publicitário. Desses publicitários que ganham o maior prêmio do mundo: entrar para o vernáculo popular (Quer moleza? Vai no Balaio) e virar adesivo de carro em quase todos os do Nordeste (Orgulho de ser nordestino). Também ganhou os prêmios concedidos pelo mercado, após horas de frias e acaloradas discussões: Cannes, Profissionais do Ano, Hall da Fama, etc.


Nem todos conhecem a brilhante estratégia por trás do tema "Orgulho de ser nordestino", criado para seu maior cliente, o supermercado Bompreço. A campanha entrou direto no coração do povo, naquela época ainda longe das discussões racistas de agora. Foi uma bem-sucedida campanha de defesa da marca local antes da chegada do concorrente multinacional Carrefour. Os franceses decidiram processar o Bompreço junto ao Conar tamanha foi a resistência que encontraram para se firmar localmente. 

Desta vez, Jairo usou de seu talento como dramaturgo para coordenar os argumentos de defesa do Bompreço: junto com Joca Souza Leão, escreveu toda a peça jurídica como se fosse um outro tipo de peça: uma paródia cômica do autor francês Molière. Havia verve, bom humor e inteligência em cada parágrafo. Venceram o caso por unanimidade. Esse era o porte da força criativa de Jairo.



Pessoalmente, Jairo me deixou mais do que ensinamentos profissionais. Um dia, chamou-me formalmente à sua sala. Pediu que eu fechasse a porta. Com ar solene, o que não lhe custava esforço, tragou o cigarro e perguntou entre a fumaça: "André, por que você gosta tanto de ler?" Fiquei surpreso com a pergunta, uma vez que ele mesmo era leitor exigente e voraz. Do alto dos meus 19 anos, respondi qualquer coisa que soasse edificante. Ele me interrompeu. "André, tudo o que a gente faz nessa vida é movido pelo sexo". Devo ter franzido a testa porque ele logo explicou: "Na minha época de faculdade, André, livro debaixo do braço comia muita gente. Por isso eu vivia lendo. Hoje em dia, não. Livro até atrapalha. Vai surfar, rapaz!"


Como Jairo viu que eu não tinha jeito (continuei lendo e solteiro), passou a me convidar para saraus que fazia em sua casa, toda santa quinta-feira à noite. Ítalo Bianchi era outro convidado freqüente. Ouvia-se ópera em seus caros Laser Discs dourados, ou sinfonias, ou alguns quartetos de Beethoven, e durante o jantar magnífico servido por Dona Lúcia, sua esposa, conversava-se sobre tudo, de livros a filmes. Lembro de uma noite em que Sr Ítalo, cansado de falar sobre a ópera em questão (Otelo, se não me engano), resolveu analisar os quadros que apareceram em um dos cenários da ópera.

Aquelas quintas-feiras (e outras no restaurante Spot, anos mais tarde) alterariam para sempre meu modo de ser e de ver o mundo.

Jairo continuou meu amigo mesmo depois de nossas mudanças de agência e estado. Sei imitar até hoje seu jeito de passar as páginas do roteiro e de tirar cigarros do maço. Sei de cor algumas frases suas que li nos contos e poemas que publicou. Uma delas: "A catedral, nua e vazia, expunha a mecânica do misticismo. Cristo, posto na cruz, mais parecia cansado que sofrido".

Jairo, que deixou a agência para ser dono de livraria, faleceu no domingo da vitória de Bolsonaro. Um gesto que tomo como símbolo de seu amor aos livros, à vida intelectual e à fina ironia.

Vá em paz, Jairo. E muito obrigado, meu amigo.

Por André Laurentino, publicitário.

Em homenagem ao dramaturgo, escritor, poeta e publicitário Jairo Lima, falecido no último dia 28 de outubro.

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